#6 - O Conformismo Lucrativo da Indústria Cultural
Sequências, Reboots, Remakes, quando isso vai parar?
Umas das minhas memórias mais antigas, aos seis anos de idade, é ir com a minha família assistir à estreia de Star Wars – Episódio III: A Vingança dos Sith no cinema do Shopping SP Market. Eu lembro de das sensações que eu tive assistindo, de sair animado e maravilhado com a história, com os efeitos, e até emocionado com o final trágico. Cresci tendo Star Wars como um dos pilares da minha vida, sempre me acompanhou muito de perto conforme eu envelhecia, tanto que eu suspeito que ver aquelas cenas no Senado Intergaláctico me fez querer estudar Ciência Política. Por muito tempo, após o lançamento do Episódio III, a franquia ficou meio dormente. Então cada novo raro lançamento era recebido por mim com muita felicidade. Eu tentava acompanhar religiosamente o lançamento da série animada Clone Wars, dos jogos de vídeo game, de alguns quadrinhos. Tudo que poderia experienciar da galáxia muito, muito distante eu ia atrás.
Esse mês, em abril de 2025, está rolando a Star Wars Celebration 2025. Evento oficial que é usado para anunciar projetos novos, com painéis exclusivos e palestras com atores e produtores dessa enorme saga. E eu não poderia estar mais desinteressado. Eu nem sabia que estava rolando, só fui descobrir porque pelo visto anunciaram que o diretor de Deadpool (cruzes) vai fazer um filme estrelado por Ryan Gosling (meu deus), além de que teremos uma nova trilogia de filmes continuando a partir do desastroso Ascenção Skywalker, o filme Mandalorian e Grogu, e uma série animada do Darth Maul. Tá bom ou quer mais? Sem contar os projetos que já foram anunciados, como o filme da Rey estrelado pela Daisy Ridley.
Desde que eu assisti Ascenção Skywalker, eu fiquei com um gosto amargo na boca. Não entendi por um tempo o que era, já que desde então vieram coisas boas como a série Andor. Porém apenas com o lançamento e subsequente cancelamento da série Acolyte que eu entendi: a indústria cultural tem aversão a ideias novas.
1. Risco indesejado
O conceito de indústria cultural foi cunhado pelos filósofos e sociólogos alemães Theodor Adorno e Max Horkheimer, referindo-se ao processo de transformação de bens culturais em mercadorias para o consumo das massas. Em outras palavras, é quando você diz que está consumindo uma mídia, ao invés de ler um livro ou assistir a um filme. Ou seja, o processo de ver esse bem cultural como um bem de consumo, e não como uma obra de arte. Na verdade, na indústria cultural, mal se apresentam como arte, apenas como produto, com seu intuito sendo produzir mais e mais, se preocupando apenas com a receita no final do ano fiscal.
Ao apresentar um produto vindo da indústria cultural, já se sabe o que esperar e o que o consumidor quer tirar disso. São padrões pré-estabelecidos dentro da linha de produção, que com o tempo eles são aceitos sem problemas pelos consumidores. Sacrifica-se a lógica, o diferente, até o revolucionário, para seguir uma padronização que leva a uma produção em série. Uma mesmice fácil e lucrativa.
Quando se está na Netflix e você encontra um filme de romance adolescente, não importa se é Barraca do Beijo ou Para todos os Garotos que já Amei, já se espera uma classificação que vai denotar o ritmo do filme. A mocinha encontra o rapaz; mocinha se apaixona pelo rapaz; conflito entre mocinha e rapaz; mocinha e rapaz acabam juntos. Isso não serve apenas para gerar uma previsibilidade, mas também para criar um senso de conformismo com o público. Nessa hora, o telespectador se torna apenas uma estatística para o algoritmo da Netflix, que analisa tudo isso e percebe que filmes com certas características são mais atraentes para o público. É uma retroalimentação de criar o previsível, analisar e recria-lo infinitamente, ou até que ele se torne cada vez menos popular. A arte e o artista se tornam conteúdo e criador-de-conteúdo, respectivamente. Não há mais uma ligação profunda ou intelectual de criador e criação, apenas mais um produto no meio de tantos outros, regurgitado por uma mesmice segura.
Quantas séries boas a Netflix não cancelou porque o misterioso algoritmo falou que ela não era lucrativa o bastante? Hoje em dia qualquer produto novo na indústria cultural precisa se provar lucrativo o mais rápido possível, ou correrá o risco de ser descartado independente da qualidade. Então se cria um cerco em volta dos criadores, que os força a se contentar a um modelo de negócio que condena qualquer tipo de nova ideia ou rebeldia. No liberalismo, você está livre para fazer, pensar e criar como bem entender, porém desde que seja como o mercado quer, já que a alternativa é cair no esquecimento.
“Essa mesmice regula também as relações com o que passou. O que é novo na fase da cultura de massas em comparação a fase do liberalismo avançado é a exclusão do novo. A máquina gira sem sair do lugar. Ao mesmo tempo que já determina o consumo, ela descarta o que ainda não foi experimentado porque é um risco.” (Adorno, Horkheimer. 1944)
A indústria cultural teme o risco. Por isso todo grande filme hoje em dia é uma sequência, um reboot, uma adaptação de outra obra já conhecida. Para a indústria, é necessário sempre uma ideia que já foi provada como bem sucedida. A aversão ao risco leva a infinidade de franquias que nem deveriam sequer ter se tornado franquias. Por que raios depois de décadas precisamos de uma sequência de Matrix, de Top Gun, de Beetlejuice? Por que anunciaram uma segunda temporada de Dark Matter, sendo que a primeira terminou muito bem e sem pontas soltas?
“Pois só a vitória universal do ritmo da produção e reprodução mecânica é a garantia de que nada mudará, de que nada surgirá que não se adapte. O menor acréscimo ao inventário cultural comprovado é um risco excessivo.” (Adorno, Horkheimer. 1944)
2. A rejeição do diferente
Na arte, sempre houveram distinções entre arte culta, nobre e elitizada, e arte popular, de fácil entendimento e da massa. O entretenimento sempre existiu, junto da arte e da expressão pessoal. Arte sempre foi acessível, não é só de Michelangelos e Da Vincis que se preenchem esse vasto mundo. A arte burguesa e elitizada sempre foi vista como mais legitima do que a das camadas mais baixas, isso até hoje. Seu Funk proibidão nunca vai passar no horário nobre da Globo, só se ele passar por um processo de “higienização” que vai torna-lo mais palatável para todos os públicos. Porém, mesmo assim, ele nunca vai tocar na Sala São Paulo, um lugar em que as pessoas vão de terno ouvir música clássica. Imagina você chegar lá de bermuda, chinelo e camiseta do Corinthians?
Porém, arte ainda é muito atraente para todos os públicos, de todas idades, de qualquer classe social, e ela é produzida por todas essas pessoas mesmo que não possuam destaque ou retorno financeiro. Mesmo que a arte burguesa rejeite a arte “simples”, excluindo as classes inferiores, ela vê nisso uma oportunidade de reproduzir seus preceitos neoliberais, aparar as arestas e mercantilizar.
A indústria cultural se define pela repetição. É ligar o rádio e não ter outra escolha a não ser ouvir música Sertaneja; é abrir a Netflix e dar de cara com a quinquagésima temporada de Stranger Things e ver aqueles atores com mais de vinte anos jurarem que ainda tão na escola; é comprar todos os anos seu Fifa ou seu Call of Duty. A inovação não passa apenas de um aperfeiçoamento de tropos que já existiam e teorias já confirmadas como lucrativas. Nós, como consumidores, nos prendemos à técnica, ao produto, e não ao que está por detrás dos panos. Criamos uma relação simbiótica com a indústria cultural, onde esses produtos possuem um significado relevante em nossas vidas. É por isso que aquela pessoa tão apegada a um livro não consegue deixar de lado mesmo que sua autora seja uma transfóbica maldita. Não importa, também, se o filme Parasita tem uma mensagem claramente anticapitalista, porque a indústria cultural não acredita em nada.
“Sua ideologia é o negócio” (Adorno, Horkheimer. 1944).
3. Eu quero um filme apenas para desligar a cabeça
Antes de começar essa parte, meu intuito não é culpabilizar o consumidor. Nós, como humanos, somos atraídos a arte, a histórias, a coisas que nos fazem pensar além da nossa existência. A indústria cultural parasita essa nossa vontade. O capitalismo tardio cria uma necessidade incessante pelo escapismo da rotina. Você chega cansado em casa, precisando só esquecer dos estresses do dia-a-dia. O capitalismo está ali, pronto para oferecer remédio para a doença que ele mesmo criou.
A diversão, ou o entretenimento, se torna uma necessidade, mas também um prolongamento do próprio trabalho. Você precisa de um escape para conseguir aguentar os outros dias de trabalho. Sua cabeça cansada, corpo pior ainda, duas horas só para voltar do trabalho no metrô cheio, seu chefe te chamando no Whatsapp fora do ponto para uma reunião. Que saco. Quero algo leve, algo que eu não precise pensar muito.
“O espectador não deve ter necessidade de nenhum pensamento próprio, o produto prescreve toda reação: não por sua estrutura temática — que desmorona na medida em que exige o pensamento — nas através de sinais. Toda ligação lógica que pressuponha um esforço intelectual é escrupulosamente evitada. Os desenvolvimentos devem resultar tanto quanto possível da situação imediatamente anterior, e não da Ideia do todo. Não há enredo que resista ao zelo com que roteiristas se empenham em tirar de cada cada” (Adorno, Horkheimer. 1944)
4. A Efemeridade das Coisas
Há alguns anos, Martin Scorsese deu uma entrevista em que falava que os filmes da Marvel “não eram cinema”. Para quem acompanha cinema, essa fala repercutiu bastante, de forma que até o ator Tom Holland resolveu responder (olha a petulância do jovem). A questão é, Scorsese não falava necessariamente da qualidade, ou querendo desmerecer a multidão de fãs.
Para quem conhece o diretor, ele é uma das maiores vozes para o cinema experimental. Scorsese sempre foi um calo no pé da academia de cinema de Hollywood, tanto que nunca premiaram ele com nenhum Óscar. Seus filmes também não fazem rios de dinheiro, e são vistos por muitos como maçantes — tanto que O Irlandês é um filme de quase quatro horas —. Quando ele dá essa declaração polêmica, seu intuito não desmerecer a equipe, os atores, os roteiristas e toda produção, ele até mesmo admite que são muito bem feitos. Só que sua preocupação maior é com o Cinema como forma de arte. Os filmes da Marvel são produtos nessa máquina incessante que é a Industria Cultural, seu intuito principal é render muita grana pro bolso do Bob Iger e dos acionistas.
Se formos ver os filmes que irão lançar no calendário da Disney, vemos nomes como Lilo & Stich, Quarteto Fantástico, Uma Sexta-Feira Mais Louca Ainda, Tron: Ares, Zootopia 2, Avatar 3, Mandalorian e Grogu. Todos esses são sequências, ou reboots. Não há nenhuma ideia nova, apenas as mesmas recicladas de novo, e de novo, e de novo, até a exaustão.
Na última década a Industria Cultural se estagnou ainda mais, cada vez menos deixando espaço para o novo ou o diferente. Eu poderia dizer que há uma relação entre essa tendência e a onda conservadora que vem cada vez mais afogando todos nós... Tá bom eu vou dizer isso.
Existe uma relação entre conservadorismo e nostalgia. É mais fácil você acreditar que sua vida era melhor antigamente, do que olhar de frente as dificuldades presentes e tentar mudar. O novo assusta, o diferente é imprevisível. É mais confortável eu me refugiar em memórias calorosas do que criar novas, tentar voltar para um passado que nunca mais será o mesmo. Então é mais vantajoso lançar um Star Wars IX, encher de personagens antigos que ninguém lembra, um CG bizarro da Carry Fisher que não fala nada com nada, e as mesmas batidas de filmes antigos, com um final absolutamente previsível. É a volta do status quo, a Rey adota o sobrenome Skywalker e vai reconstruir a ordem Jedi. Sendo que todo o ponto do George Lucas com a trilogia prequel é mostrar o quanto os Jedi são falhos, quanto eles se corromperam por causa do poder, se tornando guerreiros ao invés de defensores da paz. Mas é necessário vender uns sabre de luz de brinquedo né, onde já se viu?
Essa familiaridade cria um sentimento nostálgico, aquele afago no coração ao ver coisas familiares e lembrar de tempos mais simples. “Antigamente era melhor” diz o eleitor de certos candidatos.
5. Considerações Finais
Não sou isento nisso. Esse blog mesmo é para falar de cultura popular, e consequentemente falar de indústria cultural. Enquanto eu escrevia esse texto, eu parei para assistir o último episódio da nova temporada de Demolidor, e eu estava adorando. Eu tenho uma estante cheia de coisas de Star Wars, entre bonecos, livros e decorações. Essa franquia ainda significa algo para mim, mesmo que eu esteja exausto de tanta coisa nova e de baixa qualidade. Eu não acho que estamos errados em “consumir” ou nos apegar a essas obras (ou produtos). Estamos num mundo capitalista, e eu acredito que muitos dos criadores dessas obras tentam ao máximo criarem algo novo e artístico. Só que no final do mês todo mundo precisa pagar as contas. Então a incrível diretora Chloé Zhao precisa aceitar o cheque milionário da Marvel pra produzir um filme como Os Eternos, que claramente ela não queria estar fazendo aquilo.
Quem tem a grana, quem decide pra onde ela vai, no caso os executivos, não ligam para a qualidade, para inovação, para a mensagem ou qualquer coisa do tipo. Eles vão no final do ano fiscal olhar para a planilha, e se os números estão crescendo, ótimo! Mais dez filmes dos Vingadores no forno!
Não há espaço para nada minimamente novo. Eles mesmo se esquecem que uma série como “Breaking Bad” só se tornou o fenômeno cultural quando estava lá para quarta ou quinta temporada. As obras precisam se provar lucrativas na hora, e completamente longe de qualquer controvérsia ou dor de cabeça para os executivos. Por isso uma série como Acolyte, que mesmo estando dentro da máquina cultural da Disney, foi cancelada. Ela saiu um pouco dos conformes, ousou um pouco. Ela não é perfeita, mas tinha potencial de ser um respiro no meio de uma enxurrada de produções idênticas e fáceis. Eu acho que há espaço para franquias e sequências, mas deveria haver tanto espaço quanto para ideias novas e experimentais. Não se importar tanto com o lucro imediato, e mais com avançar a arte e o meio, além de dar lugar à vozes marginalizadas. Mas é pedir demais nos tempos em que vivemos.
Somos fãs dessas obras, mas também somos consumidores, e além disso somos vítimas de uma indústria que quer nos ver conformados com a nossa realidade, impossibilitados de sonhar.
“Assim como o Pato Donald no cartoons, assim também os desgraçados na vida real recebem a sua sova para que os espectadores possam se acostumar com a que eles próprios recebem.” (Adorno, Horkheimer. 1944)
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