#4 - Videogames e a Extrema-Direita
Como o movimento GamerGate ajudou a Extrema-Direita
Hoje em dia, é difícil usar as redes sociais e acessar espaços de discussão de cultura popular sem esbarrar com uma pessoa usando termos como “woke”, ou “lacração” de forma acusatória e vexaminosa. O espaço online sempre foi, de certa forma, tóxico. O anonimato deu a diversos usuários da internet uma proteção para serem cada vez mais agressivos contra pessoas que eles nem conhecem. Porém, a sensação é de que de alguns anos para cá, a situação foi piorando, de forma que sites inteiros — como Reddit e o antigo Twitter — são vistos como fontes inesgotáveis de ódio e preconceito. Para pessoas mais interessadas na política contemporânea, o fato é que a extrema direita possui uma presença forte, ativa e, até, organizada na internet. E podemos traçar uma fonte para tudo isso: o jogo eletrônico Tennis for Two de 1958.
Okay, estou exagerando. Um pouco. A verdade é que a forma organizacional da extrema direita que vemos hoje se deu na década passada, por meio de fóruns de videogames, no evento que ficou conhecido como GamerGate.
O Gamer como Identidade
Nos anos 1980, na época do Atari, jogos eletrônicos eram vistos como uma diversão familiar. Fliperamas eram frequentemente visitados por crianças e seus pais, videogames eram dados de presente de Natal, onde famílias inteiras se reuniam para jogar Pac-Man, Asteroids e Pong. Era um mercado popular, mas visto como brinquedo apenas, não possuía a força que viria a ter nas décadas seguintes. Porém, em 83, acontece o chamado “crash do mercado de videogames norte-americano”, uma crise causada pelo número exorbitante de jogos no mercado, porém de qualidade baixíssima, atrelado ao baixo interesse por consoles em favor dos computadores pessoais. Logo, empresas, como Atari, que era líder de mercado, passaram por momentos difíceis, com falha atrás de falha. Ao ponto que a Atari teve que enterrar no deserto uma pilha de jogos e aparelhos que eram impossíveis de serem vendidos.

O mercado não parou apesar da crise, do outro lado do mundo, no Japão, foi onde empresas como Nintendo e Sega começaram as destacar e lançar os próprios consoles, aproveitando o vácuo deixado pelas empresas ocidentais. Logo começam os primeiros indícios de identidade gamer, onde você precisava escolher se você gostava mais de Super Nintendo, ou Mega-Drive; Mario ou Sonic. Mesmo que a rivalidade não fosse tão acirrada entre os consumidores e fãs, a indústria usou essa estratégia para capitalizar em cima, cada vez mais criando peças publicitárias que cutucava a concorrência de forma hostil.
Nessa época, os videogames não eram tão vistos como arte, eram mais atrelados ao avanço tecnológico do que criativo. A questão era tecnologia e diversão. As revistas especializadas em videogame eram muito mais guias de consumidor do que peças críticas e analíticas das obras e do mercado. Então os jogos eram analisados apenas pelos seus aspectos técnicos e em comparação com outros. Com a volta da popularização dos consoles no mercado estadunidense e a proliferação de jogos em computadores pessoais, o videogame começou a ser visto como artigo de luxo, e seu público alvo se tornou o homem cis, hetero e branco, que poderia ter acesso a esses jogos. Logo, o produto começou a remeter as vontades do jogador, e nos anos 90, a cultura popular foi cada vez mais sendo puxada para o sombrio e violento, e nos jogos não foi diferente.
Jogos com aspecto militarista e bélico foram surgindo e sendo cada vez mais predominantes, além da violência se tornar presente em muitos jogos, tendo a necessidade de um sistema de classificação etária pela primeira vez. Assim surgem os estereótipos de jogos eletrônicos: violentos, barulhentos e fetichistas, com mecânicas que recompensam a violência e as personagens femininas são apenas vistas como prêmio sexual. Então, se intensifica essa ideia de um clube exclusivo, uma identidade gamer, onde homens brancos são os que pertencem a comunidade e os outros — mulheres, LGBT, e não-brancos — são deixados do lado de fora dessa cultura.
Nos anos 2000, a indústria se torna cada vez mais popular, com novas empresas adentrando no mercado, como Sony e Microsoft, mudando o paradigma do cenário em favor da tecnologia e buscando um público mais maduro. Nessa época temos jogos como Halo, que ajudaram a definir o gênero de tiro em primeira pessoa e popularizar o aspecto online. Ou God of War, que possui violência proeminente, além de nudez explicita e sexo. E principalmente Grand Theft Auto, que na época do Playstation 2, marcou uma geração inteira com uma trama voltada para criminalidade e abordando temas adultos e cinematográficos. Com a queda de popularidade dos consoles da Nintendo — principalmente com o GameCube sendo um fracasso desastroso —, que tinha como seu público pessoas de todas idades, o videogame se tornou cada vez mais uma mídia voltada para os homens adultos. Nessa época, também, houve uma explosão em popularidade de jogos com modalidade competitiva online, principalmente em jogos de tiro, comumente recheados pela toxicidade de seus jogadores. Era muito comum você ter diversos jogos que possuíam um filtro de cor cinza ou marrom e o protagonista com cabelo raspado e caucasiano, ao lado de uma mulher atraente, segurando um rifle e matando geral, porque agora jogos não são coisa de criancinha!
Enfim, se os jogos mainstream estavam se focando nas mesmas coisas e apenas num público, surge então, lá para 2010, um movimento contrário a isso. Nessa época é quando começam a se popularizar jogos independentes, promovidos por iniciativas como o Xbox Live Arcade e pela Steam. É a época que surgem jogos como Braid, Minecraft, Super Meat Boy, Fez e entre tantos outros. São jogos criados por uma pessoa, ou uma equipe muito pequena e, muitas vezes, auto publicados. Como não havia a necessidade de agradar investidores ou a pretensão de serem jogos muito bem sucedidos, seus desenvolvedores procuravam cada vez mais criar jogos diferentes e fugiam dos tropos populares da época. Além disso, esses jogos atingiam públicos que antes eram ignorados pela indústria.
Nesse cenário, no ano de 2013, surge uma personagem importante, —infelizmente para ela— Zoe Quinn. Uma desenvolvedora independente estadunidense que resolveu fazer um jogo e disponibilizar gratuitamente na internet: Depression Quest. O jogo conta a história de um homem que sofre de depressão e seu dia a dia tentando lidar com a doença. O jogo é uma ficção interativa, onde o jogador lê caixas de diálogo e pode escolher respostas e ações do protagonista. A ideia de Quinn era falar da sua experiência e ampliar o entendimento sobre depressão.
O resultado? Eleição do Trump. MAS CALMA, vou chegar lá.
O Envenenamento do Poço
Depression Quest foi aclamado pela crítica de videogames. Um jogo simples, mas com uma mensagem poderosa e muito diferente dos jogos populares da época. Isso criou um certo incômodo na comunidade gamer média. Como assim um jogo de menininha sobre tristezinha e que só tem textinho pra ler pode ser bom?! Cadê as armas, os carros, as explosões, as gostosas, a dopamina fácil e que derrete o cérebro!? Essa discussão começou a tomar uma certa força no meio gamer, porém ela só explodiu quando Eron Gjioni, ex-namorado de Zoe Quinn, posta um longo texto sobre o final de seu relacionamento com Quinn e de como ela estaria se relacionando com jornalistas de videogame para que conseguisse boas análises e notoriedade para seu jogo. A postagem repercutiu muito pelo 4Chan e Reddit, e então que começa o caos.
Quinn começa a receber ameaças de morte, de estupro e seus dados são todos vazados na internet. Da noite para o dia, sua vida se torna um inferno. Surge, então, um movimento entre gamers que tem como objetivo zelar pela ética jornalística no mundo dos games, já que, segundo eles, existe uma corrupção nesse meio que prejudica a comunidade por inteiro. O movimento se intitula GamerGate (remetendo ao Watergate, muito criativos esse pessoal que não toma banho), e promove uma caça às bruxas no meio gamer, com o intuito de desvendar a conspiração entre produtoras, jornalistas e desenvolvedores independentes. Seus alvos principais eram minorias políticas e fragilizadas, além de trabalhadores da indústria que promoveriam esse tipo de comportamento desviante.
O movimento se organizou de tal forma, que utilizava o anonimato de forúns de discussão online para atacar seus alvos, trocar informações e manipular debates. Eles entendiam como usar dos algoritmos das redes sociais para que suas opiniões fossem as únicas ouvidas e estivessem sempre em destaque, e, em contrapartida, conseguiam silenciar as opiniões contrárias. É a técnica conhecida como “envenenar o poço”, onde a pessoa cria um ambiente tão tóxico e nocivo para ideias divergentes, que o opositor já começa a discussão perdendo, porque a situação nunca irá ouvi-la ou sequer tem interesse. É uma forma de argumento ad hominem que ataca o opositor de forma que descredita tudo que ele vai falar antes mesmo de uma palavra sair da sua boca, assim, impossibilitando a discussão.
O ataque aos jornalistas vem com uma mudança de cenário na indústria. Como eu havia dito antes, a mídia especializada em games se preocupava apenas com o aspecto técnico da obra. Nos anos 2000, a perspectiva muda, com os jornalistas dando destaque para jogos não usuais e que promovem temas e mecânicas diferentes, além de se preocuparem com aspectos mais profundos em suas análises. Essa mudança, junto da popularização de jogos cada vez mais artísticos e diferentes, que usam da mídia para criar obras mais tematicamente profundas e provocadoras, criou um descontentamento dos gamers tradicionais com a indústria e com o meio jornalístico. Para eles, era claro o objetivo da mídia, das minorias sociais e dos desenvolvedores indies: destruir a indústria de videogames! Cria-se uma teoria da conspiração, além de um inimigo em comum. Essas comunidades se formavam em torno dessa narrativa, onde eles eram os defensores da verdade e dos bons costumes, além dos videogames, e lutavam contra uma organização que os excluía e queria destruí-los. Nessa época eram os chamados de SJW (Social Justice Warriors), pessoas que usavam de suas plataformas para propagar pautas de inclusão social e de diversidade. Para os gamers conspiracionistas, eles eram as vitimas dos SJW, e todo seu modo de vida estava em perigo de ser destruído por mulheres, gays e transexuais! É ditadura gay! Vai virar crime ser hétero!
Se isso parece muito familiar com coisas que estão acontecendo hoje em dia na internet e nos discursos políticos, não é coincidência. A ideia de uma guerra cultural entre a família tradicional e minorias políticas vem dessa época. O GamerGate é o berço da extrema-direita contemporânea, mais especificamente, do alt-right.
A Ascensão da Extrema Direita
Quando homens brancos percebem que eles estão “perdendo espaço” para mulheres, racializados e LGBT, homens brancos se colocam no papel de vitima e começam a pedir pelo “direito dos homens”. O alt-right surge desse sentimento, de um nacionalismo branco. O GamerGate não é onde surgiu necessariamente esse movimento, mas é onde ele se expandiu e se intensificou. As táticas de abuso online e de trollagem (quem lembra dessa expressão!?) eram muito utilizadas pelos seus membros no intuito de terem suas ideias nocivas ouvidas.
Não só de misoginia o alt-right é conhecido, muitos dos seus membros usam a ideia de evolução racial para promover uma superioridade branca, criando uma identidade branca em volta de seus membros. Além disso, eles rejeitam os preceitos liberais que os EUA se baseiam, e a todo momento procuram uma volta ao conservadorismo numa nostalgia falaciosa de como as coisas eram melhores antigamente. As coisas eram melhores quando não tinha tanto gay na novela! Eu não sou preconceituoso, só não gosto de que fiquem forçando goela abaixo!
Eis que surge outra figura emblemática, Steve Bannon. Para quem não conhece a figura, Bannon é um estrategista político, muito prolífico por fazer a estratégia de campanha de um senhor laranja chamado Donald Trump. Bannon olhou para o que estava acontecendo na internet em 2014 para basear suas táticas de campanha. Ele só precisava redirecionar a raiva e o ódio dos gamers, tirando do nicho videogame e colocando para a política. Bannon os convenceu que o problema é mais profundo, mais expansivo, e o representante desse descontentamento se tornou Trump. Logo, o movimento GamerGate se torna o movimento MAGA (Make America Great Again).
Mesmo que a estratégia de abuso e violência fossem as mesmas, agora os membros não eram apenas homens brancos nos seus vinte e trinta anos, também eram mulheres, idosos, pessoas que nunca encostaram num videogame, mas que agora enxergam uma trama para acabar com o Estados Unidos perpetuada por SJW. Usando linguagem de internet, principalmente memes, a extrema-direita se apossou da discussão política na internet, se organizando para atacar opositores políticos e monopolizar esses espaços. A situação foi cada vez mais se agravando, de forma que durante a pandemia, esses grupos foram responsáveis por propagar mentiras anticientíficas que custaram vidas de milhões de pessoas.
E a situação não é apenas exclusiva dos EUA. Em 2018 e 2022, nas eleições para presidente do Brasil, a família Bolsonaro chamou Steve Bannon para ajudar na estratégia de sua campanha. Não à toa que o MAGA é tão parecido com o movimento bolsonarista.
Não é sobre Videogames
O GamerGate nunca foi sobre videogame. Os jogos eram apenas um bode expiatório para racismo, homofobia, misoginia, xenofobia e todo tipo de desgraça. Hoje em dia o movimento com esse nome se dissipou, porém ainda há muitos resquícios. Entrar no X e se deparar com inúmeras postagens de ódio com videogame sendo o tema. Ano passado, jogos como Dragon Age Veilguard, ganharam os holofotes não pela sua história, mecânicas, ou gráficos, e sim por abordar, num cenário de fantasia, temas como identidade de gênero e sexualidade. Até mesmo fora do mundo dos jogos isso é visto, como o caso de Star Wars Acolyte, que teve um movimento de ódio tão grande contra a série, por conta de seu elenco diverso, que a Disney resolveu cancelar.
Os “Social Justice Warriors” hoje em dia são o que chamam de woke. Para os extremistas de direita o simples fato de uma pessoa existir já é uma afronta ao seu modo de vida, e se eles possuem um destaque sequer numa obra midiática, eles vão gritar, chorar e se fazerem ouvidos por meio da violência simbólica.
Eu sempre joguei muito videogame, alguns dos jogos que eu citei como “violentos” são jogos que eu gosto. Porém eu vejo videogames como arte, como obras interativas que podem ser tão diversas quanto seus desenvolvedores quiserem. Me entristece que a indústria anda cada vez mais para o comodismo com medo de desagradar o gamer médio. No final, quem dita como a indústria funciona são os empresários e os investidores, para eles não interessa a arte, apenas o produto e sua receita. Enquanto o gamer médio estiver comprando, tanto faz, mesmo que ele compre apenas para gritar e espernear.
Há muito mais questões que levaram a ascensão da extrema-direita globalmente, não apenas uns gamers fedidos e descontentes. Meu intuito aqui não é dar uma explicação para isso na verdade, apenas apresentar para as pessoas de fora da bolha de videogame esse fenômeno que, infelizmente, ajudou a moldar o ambiente político que vivemos hoje.
Bibliografia:
GOULART, L.; NARDI, H. C. GAMERGATE: cultura dos jogos digitais e a identidade gamer masculina. Mídia e Cotidiano, v. 11, n. 3, p. 250-268, 20 dez. 2017.
Salter, M. (2017). From geek masculinity to Gamergate: the technological rationality of online abuse. Crime, Media, Culture, 14(2), 247-264. https://doi.org/10.1177/1741659017690893 (Original work published 2018)
#264 - A guerra de consoles acabou? [Loucação de]: Dan Schettini, Marcellus Vinicius, Henrique Antero. 5 de março de 2025. Up Podcast. Disponível em: link. Acesso em:
Bom texto. Muitas coisas que foram informadas não eram do meu conhecimento. Continuem o bom trabalho.