#1- Persona e como precisamos um dos outros
Falando sobre o jogo Persona e analisando seus temas por meio da sociologia e da psicologia
我は汝、汝は我,
Eu sou tu… tu és eu…
Um jovem adolescente se muda para uma cidade nova no Japão. Sem conhecer ninguém, deslocado do seu mundo habitual, o jovem precisa conhecer novas pessoas e se adaptar a um mundo hostil e confuso: o do ensino médio numa escola nova. Porém, isso não é tudo, forças sombrias ameaçam o mundo de forma furtiva, e esse jovem, junto do seu grupo de amigos tem o poder de combater essa ameaça. É assim que podemos descrever de forma bem crua e genérica os jogos da série Persona.
Produzido pela empresa de videogames japonesa, Atlus, Persona era uma série de RPG de nicho, derivada de outra série de RPG de nicho, Shin Megami Tensei. Eu conheci esse jogos por acaso, num dia qualquer de 2017, comecei a jogar Persona 4 e tive a química do meu cérebro alterada. Recentemente os jogos têm tido bastante tração, alcançando um número cada vez mais alto de novos fãs e jogadores interessados.
Nesse texto eu vou falar um pouco dos temas da série Persona, discutir um pouco das suas influências e relacionar com assuntos da sociologia e da psicologia. Minha intenção é falar desses jogos não só como produto da indústria cultural, e sim como obra de arte, discutir de forma crítica e madura, não só como fã. Talvez eu consiga, talvez não.
Adendo: irei me focar mais nos Persona 3, 4 e 5. Os primeiros da série são muito queridos por mim, porém os temas são diferentes e pretendo fazer um texto apenas focado neles no futuro, ou falar deles quando eu escrever sobre Shin Megami Tensei.
Persona é uma série de RPG japonesa, que possui suas peculiaridades próprias. Usando Persona 4 de exemplo, você joga com um jovem garoto, que você mesmo nomeia, que se muda para a casa do tio e da prima no interior do Japão. Nova cidade, nova escola, novas pessoas. Toda aquela coisa de adaptação. O jogo possui grandes influências de jogos de simulação de vida, e talvez seu aspecto mais particular seja o sistema de calendário. Quando eu digo que você irá passar um ano na casa dos tios, é basicamente isso mesmo, o jogo possui um sistema de dias e meses, que vai te guiar conforme você vai avançando e fazendo atividades dia após dia. (Perfeito para pessoas que possuem agendas!) Então você precisa ir à escola, fazer provas, sair com amigos, estudar, dormir e, acima de tudo, fazer as missões e explorar dungeons.
Todos os jogos possuem uma premissa semelhante, onde jovens precisam se reunir e lutar contra seres sombrios que surgem da mente coletiva humana, como reflexos dos pensamentos mais obscuros das pessoas. Para isso, os protagonistas usam Personas, que são manifestações da personalidade das pessoas, descrita como uma “máscara” usada para enfrentar dificuldades. Essas Personas tomam formas de seres mitológicos e lendários, podendo ser deuses gregos ou japoneses, heróis históricos ou até personagens literários.
O que são Personas?
O protagonista de Persona 3 tem como Persona o personagem da mitologia grega Orfeu, que foi até o submundo resgatar sua musa Eurídice. Orfeu é um personagem tolo, já que no final de sua jornada ele olha para trás e põe tudo a perder, duvidando que sua amada estava o seguindo, além de também ser esse personagem trágico e que se sacrificou para salvá-la no fim. Sua jornada é semelhante à do protagonista e seu grupo, onde eles precisam atravessar uma torre chamada de Tartarus para livrar o mundo da maldição da Dark Hour. Orfeu é a representação da psique do protagonista, de forma que eles se parecem fisicamente.
Outro aspecto importante para entender o que são as Personas é entender a relação da série com o Tarô. Existem 22 arcanas maiores no tarô, e cada uma representa um personagem principal dos jogos e suas Personas. O protagonista sempre é o Tolo (0), e isso é de suma importância, já que a carta representa o começo da jornada da vida, mas também a ingenuidade da fé nessa jornada, onde apesar dos perigos e da dor, há a esperança de um final feliz. O tolo é representado pelo número zero, que não tem valor por si só, mas junto com outros números possui um potencial ilimitado. Esse potencial é representado pela mecânica particular que o protagonista possui, o de Wild Card.
Cada Persona no jogo funciona como classes, por exemplo, Akihiko possui como Persona Polideuces (Estrela), que é como se fosse um guerreiro para RPGs tradicionais, enquanto Mitsuru possui Pentesileia (Imperatriz), que é uma maga. Já o protagonista, começa com Orpheus, mas pode mudar de Persona quando quiser, assumir diversas formas, se adaptar a qualquer situação. Por isso ele é o Tolo, já que a jornada parte dele, e a jornada do Tolo precisa passar por todas as Arcanas maiores até conseguir conquistar o Mundo (21) e se sentir completo. Por si só, ele não é nada, mas em contato com as outras Arcanas, ele se torna diferente, ele se adapta, ele muda e se torna melhor.
As Personas também são a representação do estado de espírito do personagem. Há Personas que se rebelam contra o usuário quando esse se encontra num estado de puro desespero e colapso mental. Outras vezes elas se transformam numa versão mais poderosa da anterior quando o personagem passa por uma transformação pessoal, geralmente se aceitando e se entendendo.
Na psicologia analítica, principalmente segundo Jung, Persona é uma identidade que construímos para atender ao que a sociedade espera de nós. É uma máscara que colocamos e que não necessariamente representa o eu verdadeiro. Isso pode gerar uma repressão, uma “Sombra”. Esse lado reprimido é o que a pessoa esconde para manter uma imagem aceitável de si.
No quarto jogo, a Sombra dos Personagens é aquela parte que os protagonistas reprimem de si e que ganha uma forma corpórea num mundo alternativo chamado de Shadow World. Kanji reprime sua sexualidade e tenta se passar pelo estereótipo de homem, escondendo seu lado frágil e amoroso. Naoto tem problemas ao aceitar uma mulher, de forma que ela esconde seu gênero de todos e usa um visual andrógeno. Todas essas máscaras que eles colocam para si, voltam para atormentá-los, figurativamente e literalmente! E só quando eles aceitam esse lado obscuro do seu ser, é que eles podem despertar o seu poder e invocar a Persona.
Persona e Máscaras Sociais
Algo interessante que acontece é a relação entre Persona e máscaras, ao ponto que em Persona 5 o ato de “despertar a Persona” é literalmente o personagem arrancando a sua máscara, ou, no caso, a pele do rosto. (Relaxa, fica tudo bem!) E a partir daí ele ganha uma máscara física e uma roupa que simboliza seu espírito de rebeldia e toda vez que ele vai invocar a Persona, ele tira a máscara.
Isso me lembra um conceito interessante da sociologia, semelhante a psicologia de Jung. Eu adoro usar esse sociólogo, porque ele explica muito sobre os motivos dos nossos comportamentos e a ideia de que não podemos ser completamente abertos com os outros.
O conceito de Máscaras Sociais de Erving Goffman fala que nossa vida social se assemelha a uma peça de teatro, onde desempenhamos diversos papéis e escolhemos diferentes máscaras para cada situação. Então existe um você que é filho, estudante, empregado, amigo, conhecido, inimigo, amante, e para todas essas situações você usa uma máscara diferente. Nós estamos constantemente atuando em nossas vidas para nos adequar a diferentes situações. Estamos sempre nos conformando a normas sociais, então quando você está no seu trabalho, é preciso agir como um bom funcionário, chegar na hora certa, ouvir calado o esporro do seu chefe, fazer seus deveres com eficiência, rir das piadas idiotas do seu colega de trabalho, mesmo que a sua vontade seja de plantar uma bomba no prédio da empresa e ver tudo aquilo ir pelos ares.
Ao mesmo tempo que existe um “bastidor”, onde estamos mais relaxados e mais autênticos, e nos preparamos para voltar aos palcos e atuarmos esses diferentes papéis todos os dias. Fazemos isso em busca de um objetivo, então quando você vai para o seu trabalho e não faz uma besteira, apesar do incômodo, para que no final do mês seu salário esteja depositado como nos conformes. Isso não é inerentemente ruim, somos seres racionais, procuramos sempre maximizar nossas conquistas para um bem próprio. Não é egoísmo, é só uma forma de viver em sociedade, e não ferindo os outros, não tem porque não viver assim.1
É exatamente a parte social de Persona, onde os personagens possuem uma luta para se aceitar por detrás dos bastidores. Isso é muito presente no quarto jogo da série, onde o tema musical fala isso nitidamente:
We're all trapped in a maze of relationships
Life goes on with or without you
I swim in the sea of the unconscious
I search for your heart, pursuing my true self
É dessa busca que surgem os melhores momentos dos três jogos, da busca por respostas, por entendimento, por se conhecer e se aceitar. Os três jogos lidam com esses temas de formas diferentes e em níveis diferentes.
O terceiro jogo, que tem um clima mais melancólico e sério, seus temas são permeados pelo luto, pela perda e pela falta. Todos os personagens perderam algo ou alguém, e nessa busca por aceitar a perda, lidar com o luto, eles se encontram, se apoiam e se aceitam. É um jogo de chorar.
Acho curioso, também, que no mesmo jogo isso é refletido pelo sistema de party. Normalmente em jogos de JRPG, você tem controle total de todos os membros, mas no 3 original você só controla o protagonista. O intuito dos desenvolvedores é demonstrar a dificuldade de lidar com outras pessoas, e só por meio da comunicação vocês conseguem se entender e trabalhar juntos. Então a IA do jogo responde aos seus comandos e formas de jogar e você precisa se adaptar a ela da mesma forma que ela se adapta a você. É uma mecânica frustrante, mas lidar com pessoas também é. Cada um tem seu modo de ser, seu jeito, seu temperamento. Aceitar as diferenças também é buscar ser aceito, e se abrir para essas frustrações é a única forma de se conectar verdadeiramente com os outros.
Eu particularmente gosto de como o jogo traduz o sentimento de se fortalecer por meio de uma rede de apoio em mecânicas do jogo. Por meio dos “Social Links”, o protagonista tem relações com outros personagens, cada um representando uma arcana maior, e conforme você se aproxima mais deles, mais o protagonista fica forte em termos de gameplay. O poder da amizade!
Eu acho Persona uma série de jogos fascinante, e muito acessível hoje em dia, além de uma porta de entrada perfeita para quem se interessa por RPGs. Mesmo que você não vá jogar, eu recomendo fortemente escutar a trilha sonora, que poderia muito bem ouvida até por quem não gosta de videogames. (Clica aqui pra ouvir!)
A série me ajudou num momento complexo do final da minha adolescência e começo da vida adulta, onde eu vi tudo muito diferente e me sentia meio sozinho. Até hoje me lembro de alguns momentos dos jogos e procuro buscar um pouco de forças em personagens ficcionais de um joguinho japonês, mas que por algum motivo importam tanto pra mim.
Esse trecho eu tirei de outro texto meu: A Máscara Que Eu Uso