#7 - Histórias em Quadrinhos e Literatura
Histórias em Quadrinhos são um meio literário? Um meio artístico? Ou apenas um produto da indústria cultural?
As histórias em quadrinhos foram introduzidas, da forma como conhecemos hoje, no início da década de 1930, porém suas origens podem ser datadas do século XIX com curtas histórias do suíço Rodolphe Topffer no ano de 1827. Desde então o meio se transformou, e a partir de 1940 se tornou um mercado lucrativo consumido pelos mais diversos tipos demográficos. Porém, desde essa época, as histórias em quadrinhos são vistas por críticos literários e estudiosos como um meio subliterário e que poderia ser danoso para o desenvolvimento de crianças e adolescentes.1
A proposta deste texto não é defender que histórias em quadrinhos devem ser consideradas um gênero literário ou que estão no mesmo patamar, mas sim traçar um paralelo entre literatura, produção artística, estigmatização e meio em questão. Esse paralelo será feito por meio das análises de Antônio Cândido e Roger Bastide sobre literatura e arte correlacionados com a sociedade, além do estudo de Paul Lopes como o conceito de estigma de Goffman (1922-1982) se encaixa no caso de histórias em quadrinhos.
Candido (1965), diz que arte é um produto social, que depende das ações de fatores do meio e que produz efeitos práticos sobre os indivíduos, modificando sua conduta e concepção do mundo. Além da posição social do artista, há também a posição dos receptores, determinadas camadas sociais são condicionadas a consumir tipos específicos de arte. Histórias em quadrinhos são necessariamente um meio popular, consumido comumente pelas massas e não por elites, o que traz um caráter de subcultura que não possui uma qualidade refinada como obras literárias.
O autor define a arte como um meio de comunicação expressivo, que expressa realidades profundamente radicadas no artista. Bastide (1945) diz que a vontade de inovar e de produzir algo inédito é o que leva o artista a produzir arte, porém esse artista está inserido num meio social determinado, esse meio molda o artista e o insere de forma que ele trabalha com o meio que está a seu dispor.
Do ponto de vista sociológico, Candido (1965), diz que na literatura o autor se incorpora a um sistema simbólico vigente, utiliza um meio de expressão já vigente e determinado na sociedade, no caso a produção literária. Porém há um segundo tipo de arte, que o autor chama de “arte de segregação'', que se liga com a visão de Bastide, onde o artista procura renovar esse sistema simbólico e produzir novos recursos expressivos.
A literatura é definida por Roman Jakobson como uma violência organizada contra a fala comum. É um meio não pragmático de linguagem, uma forma poética e artística de se comunicar por meio das palavras, seja por prosa ou versos. (MARTINS, Georgina. 2015) A dificuldade de ver histórias em quadrinhos como um gênero literário está em seu caráter híbrido, onde a justaposição de palavras e imagens dificulta ser considerado tanto como literatura, quanto como artes visuais por acadêmicos. Além de ser considerado como um meio manchado por sua produção em massa e estritamente ligado às editoras que controlam todo o meio. (ROEDER, Katherine. 2008)
As histórias em quadrinhos são estigmatizadas como subcultura e um meio destinado às crianças desde sua popularização nos anos 1930. No entanto, à época, os quadrinhos mais populares eram voltados ao público adulto, masculino e feminino, e histórias de mistério, dramas policiais, terror, suspense eram tão vendidas quanto as de super-heróis e fantasia. Até que em 1954 foi implementado o Comics Code nos EUA, uma legislação aprovada pelo senado que censurou temas adultos, como crime e horror, das histórias em quadrinhos, fazendo com que o meio, a partir daí, fosse dominado por histórias infantis e de super-heróis. Além de ser visto como uma forma artística inferior à literatura, as histórias em quadrinhos começaram a ser consideradas inferiores às artes visuais. A visão de que quadrinhos são um meio de produção em massa de baixa qualidade fez com que artistas que trabalhavam desenhando quadrinhos usassem pseudônimos com medo de suas carreiras fossem manchadas. (LOPES, Paul. 2006)
De forma geral, histórias em quadrinhos vivem num “limbo” entre artes visuais e literatura, e isso se dá também pela forma em que são produzidas. A maioria dos quadrinhos são um trabalho em conjunto entre escritor e desenhista, ambos trabalham juntos para desenvolver a narrativa e são considerados coautores da obra. No entanto, essa forma de produção em conjunto resulta numa visão pejorativa do meio, já que as questões de autoria se tornam complexas de serem definidas, principalmente quando se coloca outros atores em questão, como colorista, editor e a própria publicadora. Obras populares como Super-Homem são relacionadas comumente à empresa que possui seus direitos da marca, no caso a DC Comics, e não aos autores originais que criaram o conceito. Esse dilema levou autores como Alan Moore, de Watchmen (1986-1987) e V de Vingança (1982-1989), e Erik Larsen, artista dos gibis do Homem-Aranha em 1990, a se desvencilharem de grandes publicadoras e procurarem o mercado de publicação independente, uma vez que estavam insatisfeitos de terem pouca autonomia como artistas ao escrever suas histórias.
As Histórias em Quadrinhos são vistas como um grande meio de produção em massa. No Japão, mangás são tão populares que ultrapassam as vendas de gibis americanos, como é o caso de Demon Slayer que até 2020 vendeu no total 120 milhões de cópias por todo o mundo.[1] A visão de que quadrinhos têm como objetivo apenas fins lucrativos mancham o meio onde não são considerados arte. No entanto Bastide (1945) argumenta que o público é peça chave para o artista, já que é do público que vem o dinheiro necessário à sua existência. Arte por arte não existe, o artista por profissão não sobrevive apenas de reconhecimento por sua obra, é necessário um incentivo monetário para que ele consiga se sustentar e produzir mais. O meio das histórias em quadrinhos é controlado por grandes editoras, assim como é o meio literário, onde autores de livros ganham uma parte pequena das vendas de seus livros em comparação com as editoras. Nesse caso, apenas as histórias em quadrinhos são desqualificadas por seus valores comerciais.
Como Candido (1965) propõe, a arte vem do meio social, da sua época e do condicionamento imposto ao artista, esse que pode ser tanto arte de agregação quanto arte de segregação. As histórias em quadrinhos, no contexto em que foram popularizadas, podem se encaixar na segunda categoria, já que procuravam renovar o sistema simbólico e criar novos recursos expressivos, no caso, juntar literatura com artes visuais. Porém o que as tornou um meio estigmatizado é por serem, necessariamente, um meio democrático. Quadrinhos possuem uma linguagem popular e de fácil acesso, além de desenhos vibrantes e seu intuito é comunicar e contar uma história por meio de uma narrativa que trabalha arte e palavras em conjunto. O meio nasceu cresceu entre a cultura popular, alguns dos maiores nomes dos gibis clássicos são refugiados, proletariado e desajustados sociais, seu público ia desde crianças de nível fundamental até jovens adultos. Enquanto as tiras de jornal tinham um valor social elitizado por ser caracterizado por críticas sociais e caricaturas políticas, além de serem consumidos por todo tipo de demografia, inclusive a elite econômica, histórias em quadrinhos foram estigmatizadas por conta desse caráter popular e quebra de paradigmas artísticos. Esse estigma sobre o meio das histórias em quadrinhos causa uma estagnação para o entendimento do mesmo, de forma que historiadores da arte costumam ignorar o meio, e críticos literários mais conservadores e acadêmicos costumam ignorar as obras e estigmatizá-las como menos que literatura. (LOPES, Paul. 2005)
No entanto, em 1992, Maus, de Art Spiegelman, foi a primeira história em quadrinhos a ganhar o prêmio Pulitzer na categoria especial em literatura, o que fez com que a obra ganhasse maior reconhecimento entre acadêmicos. Por mais que o meio não seja considerado ainda como gênero literário, e a questão não se deve ser visto como tal, nas últimas décadas se tornou cada vez mais popular — mesmo que ainda seja visto comumente como um meio infantil — por conta do esforço do público, artistas e editoras de quebrar as barreiras do meio. Histórias em quadrinhos, antes limitadas a lojas específicas para venda de revistas e gibis e bancas de jornais, são comumente encontradas em grandes livrarias. O mercado de histórias em quadrinhos cresceu de forma que gerou inúmeras adaptações para os mais diferentes tipos de mídias, como filmes, jogos eletrônicos, livros, brinquedos, vestuário e etc.
Mesmo que os quadrinhos não sejam considerados como literatura, hoje em dia são vistos como um meio de arte relevante e em constante ascensão. Como Candido (1965) diz, a obra depende estritamente do artista e de suas condições sociais, porém o conteúdo é ditado pela modalidade, pela sua forma, nesse caso histórias contadas por meios de desenhos e balões de falas.
Bibliografia:
BASTIDE, Roger. Arte e Sociedade. Segunda edição. São Paulo: EDUSP.
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. Nona edição. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.
LOPES, Paul. Culture and Stigma: Popular Culture and the Case of Comic Books. Sociological Forum, Vol. 21, No. 3. 2006
MARTINS, Georgina. O que é Literatura. 2015
ROEDER, Katherine. Looking High and Low at Comic Art. American Art, Vol. 22. No. 1 2008
Texto originalmente escrito para em 12/2021 para a disciplina de Sociologia da Literatura, ministrada pelo Dr. Luiz Jackson, na FFLCH-USP. O texto foi adaptado para o formato de postagem online e revisado em pequenas partes.
Eu li Maus alguns anos atrás e fiquei completamente apaixonada!! Quero muito ler outras HQs