#3 - Anora: superficialidade e intimidade
Comentando um pouco sobre o filme ganhador do Oscar de 2024;
Antes de começar a ler, saiba que o texto terá spoilers sobre o filme!
A queridinha da academia de cinema estadunidense, Anora foi dirigido por Sean Baker e estrelado por Mikey Madison. O filme conta a história de Ani, uma dançarina num clube de striptease, e que em um certo dia no trabalho, conhece um jovem filho de uma família muito rica da Rússia, e num impulso resolve se casar com ele.
Eu tenho sentimentos conflitantes sobre esse filme. Eu achei muito bom, porém a primeira metade do filme tem um tom meio estranho, semelhante a de um romance erótico, em que mostra a vida de Ani, seu trabalho e seu relacionamento com Ivan (Mark Eydelshteyn), e todas suas escapadas regadas por farra, drogas e sexo. A segunda parte, que eu achei bem melhor e muito bem executada, é muito mais divertida e interessante, introduzindo mais personagens e tendo aquele toque de dramédia bem caótica que funciona muito bem. Talvez essa diferença gritante de tom funcione para que o filme seja imprevisível. Eu definitivamente não imaginava que daria tanta risada com um grupo composto por Ani, um católico ortodoxo e dois capagangas.
Eu acho que entendo o que Sean Baker queria com o filme e com seu desfecho de partir o coração, porém eu penso um pouco na execução das cenas, não de forma degradante, mas sim do intuito de que cenas “explicitas” possuem para a narrativa. Enquanto outros filmes, como A Substância e Pobres Criaturas, também possuem varias cenas de nudez e sexo, tem algo em Anora que parece diferente dos outros de certa maneira. A Substância usa do Male Gaze para criticar o machismo e a objetificação do corpo feminino, enquanto Pobres Criaturas usa a sexualidade e o corpo da personagem para falar do papel e das liberdades femininas numa sociedade que quer ditar o que ela deve fazer. Essas cenas nesses filmes não tem o intuito de apenas serem sexy — acho que em Pobres Criaturas elas nem são —mas sim de contar uma narrativa por meio delas e desenvolver suas personagens.
Enquanto em Anora, Sean Baker tenta estabelecer uma dicotomia entre intimidade e superficialidade, que é um tema muito interessante, além de mostrar que, apesar de tudo, Ani é dificilmente vista como pessoa pela maioria dos personagens desse filme, salvo um. Longe de mim ser moralista e falar que cenas de sexo em filme são desnecessárias, muito muito longe disso. Creio que a primeira parte do filme em que há várias cenas de sexo e nudez é para explicitar a parte superficial das relações que Ani possui, principalmente com Ivan. Ela começa sendo visto como um objeto e termina sendo vista como objeto. Não há vitória para a personagem nesse quesito, não há um “viveram felizes para sempre” no seu conto de fadas imaginário, até sua condição como mulher e ser humano é reduzida a um objeto sexual. Na segunda parte, ela vê seu mundo dos sonhos cair peça por peça. Aos poucos, Ani percebe que Ivan mal se importa com ela, enquanto ela via ele não só como seu marido, mas como uma saída da vida difícil que ela levava. É óbvio pro telespectador que Ivan é só um moleque mimado, mas Ani é só uma garota que quer ser amada e cuidada, levar uma vida simples em que ela não precise ralar todos os dias trabalhando e ganhando pouco. Não tem como culpá-la por cair no papinho de Ivan. Na minha percepção, Ani vê intimidade da forma superficial, acostumada a ser recompensada com dinheiro e luxo por sexo e divertimento. No primeiro momento que Igor (Yura Borisov) tenta a tratar como pessoa, ela levanta toda sua guarda e o trata com hostilidade. No desfecho do filme, dentro do carro, Igor entrega o anel de casamento recuperado para Ani, de forma que ela o recompensa como sempre fez— com sexo. Porém, Igor realmente gosta e se importa com ela, e tenta beijá-la, ao ponto que Ani resiste e se enfurece, e finalmente abaixa sua guarda e pode chorar copiosamente e experienciar, pela primeira vez, verdadeira intimidade.
O artista visual e diretor de cinema, Andy Warhol, entoou a frase “sexo é maior nada de todos os tempos”. Colocamos muita importância, significado e até culpa numa ação que poderia ser muito mais simples. Acho interessante como Sean Baker sempre coloca profissionais do sexo no centro de seus filmes. Ani tem seus desejos, tem uma personalidade forte, é muito engraçada propositalmente ou não, e a todo momento durante o filme ela tenta manter sua dignidade num meio em que a reduz todo momento. O fato dela ser uma dançarina numa boate deveria ser visto, talvez, só como a profissão da personagem. Porém, eu vi críticas de pessoas que não gostaram do filme pelo seu teor sexual, que falam sobre o papel de Ani e que acabam por a reduzi-la também ao papel de uma “prostituta hipersexualizada” e ignorando sobre o que o filme quer falar e ignorando todas as cenas em que ela é uma personagem riquíssima. Entendo algumas das críticas, mas falar que Ani não tem agência ou personalidade é absurdo, além de dizer que o filme romantiza a vida de prostituição, o que não parece ser o caso. Pior ainda quando eu vejo algumas interpretações sobre o final que veem o sexo como uma recompensa apenas e não como o primeiro momento de intimidade real que Ani tem em todo o filme. Esse debate sobre trabalhadoras do sexo é complexo, e pouquíssimo debatido. Talvez muito da percepção sobre o filme vem de como as pessoas enxergam trabalhadoras do sexo, não como parte do proletário, que merecem respeito e diteitos, mas como deviantes marginalizadas. (Recomendo o texto da Bárbara Krauss sobre o assunto)
A interpretação de Mikey Madison como Ani é hipnotizante. Todos os trejeitos, expressões, tom de voz, a forma que ela entrega cada fala com muita personalidade. A personagem é cativante e a atuação, de todo elenco também, só elevou o filme pra patamares ainda maiores. Anora não seria tão interessante sem Mikey Madison, é um casamento perfeito entre atriz e personagem. Entendo se frustrar porque Fernanda Torres não ganhou o Oscar, mas desprezar o trabalho primoroso que Mikey faz nesse filme é uma tolice sem tamanho. É atacar uma artista pra defender outra, ao invés de admitir que ela merecia o prêmio assim como a Fernanda ou a Demi Moore também mereciam, e elevar o debate ao invés de reduzir a uma rivalidade inútil.
Enfim, tenho muitos pensamentos sobre, nem todos muito concretos. Nem acho que é meu lugar discutir muitos dos temas e problemas desse filme, não só por ser homem, mas porque eu não entendo muito pra poder fazer uma crítica digna da profundidade que esses temas merecem. Quis colocar minha percepção sobre o filme aqui e do debate acerca dele porque ele me fez pensar bastante sobre tudo isso que eu escrevi. Vou tentar me inteirar mais sobre o assunto, percebo que eu tenho ainda resistência muito por conta de um moralismo vindo da minha criação cristã, mas isso não é desculpa para não abrir minha mente, ainda mais que eu nem sou religioso. Enfim, gostei muito do filme, mas ganhar o Oscar de Melhor Filme… é um exagero…
Agora de melhor atriz podemos discutir!
Esse texto foi originalmente escrito para o Loot da Semana, porém ficou tão grande que eu decidi tornar um post idependente. O Loot da semana sairá sábado!
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eu acho que boa parte dessa crítica negativa geral sobre o filme é resultado dessa nova onda conservadora, sobretudo por parte dos jovens. vi vários textos falando que a história romantiza a prostituição, quando na verdade só mostra como é um trabalho marginalizado... é uma questão de classe, onde um casamento significa coisas absurdamente distintas. pro Ivan, é uma forma de pirraça, uma rebeldia. pra Ani, é ganhar na loteria (acho que até uma amiga dela diz isso). no fim, a rebeldia dele não tem nenhuma consequência, enquanto que pra ela... como normalmente acontece entre ricos e pobres.